Entrevista a Philip Gröning, realizador do documentário "O Grande Silêncio"



Philip Gröning, realizador do filme O Grande Silêncio, que mostra a vida dos monges da Grande Cartuxa, em Grenoble, visitou a Cartuxa de Évora antes do lançamento de "O Segredo da Cartuxa" (edição Pedra da Lua), de Paulo Moura e Nacho Doce. Entrevista ao realizador, que comparou os dois mosteiros e falou entusiasmado do livro.

O superior da ordem vem ao portão, pega-lhe no braço e condu-lo em direcção à igreja. Vamos atrás, depois de alguma hesitação, mas é para ele que vai toda a atenção de cicerone. Acabada a explicação histórica sobre o edifício, mandado construir durante a ocupação espanhola, mas que sofreu, em 1834, a sanha anti-religiosa do “mata-frades” Joaquim António de Aguiar faz-nos um resumo do que disse e dá-nos a perceber que só Philip poderá penetrar no interior do mosteiro.

Philip Gröning, 46 anos, é o autor do filme O Grande Silêncio, que dá a conhecer o dia-a-dia dos monges da Grande Cartuxa, em Grenoble. O filme, que acabou de sair em Portugal em formato DVD e teve um milhão de espectadores na Europa (para lá da sua exibição em televisões), começa agora o circuito das Américas.

Familiares levaram cópia do filme aos monges da Cartuxa de Évora, que gostaram do trabalho. Por isso disseram de imediato que sim, quando - impossibilitado de estar presente no lançamento do livro, esta terça-feira – o realizador se mostrou interessado em visitar o mosteiro, com cujas imagens e estilo de vida tomou contacto através do texto de Paulo Moura e das fotos de Nacho Doce.

Público - Que diferenças sentiu entre esta Cartuxa e a Grande Cartuxa?

Philip Groning - Esta é muito amigável, clara e luminosa. Há um jardim fantástico no meio, como um pedaço de paraíso, muito simples. Fora, pensa-se que há um grande luxo, como na igreja, mas no claustro e nas celas não há nada. É de uma simplicidade e de uma harmonia perfeitas.

Público - Mais que na Grande Cartuxa?

Philip Groning - Sim, porque é mais luminoso. Na Grande Cartuxa vê-se que todo o edifício tem que se defender muito contra a neve, contra o frio. O claustro é fechado por boas razões: por vezes, no Inverno, há três metros de neve. Se não estivesse fechado, não se podia passar. Aqui, tudo é aberto e há um pequeno jardim com laranjeiras e uma fonte de água...


Público - Os monges viram o filme e ficaram frustrados, porque consideraram que teria sido melhor fazer o filme aqui. Teve a mesma sensação?

Philip Groning - Eu comecei por pedir autorização a Morieux, [cartuxa] no sul da França. É muito semelhante à de Évora. É uma pequena organização agrícola com um mosteiro, mais pequena do que esta. É muito luminosa também e quando, no primeiro momento, me disseram que me davam permissão de filmar na Grande Cartuxa, pensei que era pena não ter autorização para o fazer em Morieux.
Mas, para fazer o filme, essa era já uma primeira aproximação séria ao modo de viver dos monges: a regra número um deles é a obediência e se a ordem me pedia que fizesse o filme na Grande Cartuxa, eu devia fazê-lo.

Público - Nunca poderia ser completamente diferente: ser monge aqui ou na Grande Cartuxa não é a mesma coisa?

Philip Groning - Em princípio é a mesma coisa. Mas o silêncio é diferente, porque aqui ouvem-se mais os pássaros. Em Grenoble, [o local] é mais elevado e agora, em Dezembro, há um metro de neve. A regra é a mesma em todo o lado e a estrutura principal das células também. Mas, para um monge contemplativo, a natureza é muito importante, porque, como não se está todo o tempo em contacto com seres humanos, ver as plantas, os pássaros, as nuvens, o sol, a luz, tudo isso é muito importante. A vida de um monge que vive no frio é diferente da de um monge que vive num país quente.

Público - É por isso que também se sente no filme que mesmo os pequenos objectos e as coisas do quotidiano têm uma grande importância?

Philip Groning - Sim. Vivi lá durante meio ano e experimentei que, quando não se fala e não se ouve falar, os objectos, presença do mundo, têm uma importância muito aguda, muito viva. É a única coisa que, de certa maneira, faz viver, porque são o único elemento com que se está em contacto nesse momento. Filosoficamente, apercebemo-nos que é um milagre sem explicação que haja qualquer coisa em vez de não haver nada.

Público - Encontrou-se com os monges?

Philip Groning - Não, aqui não, vi um irmão que trabalhava. É a regra do silêncio. Falei com o procurador, mas com outros não falei. Saudámo-nos, mas sem falar.

Público - Já esteve em outros mosteiros?

Philip Groning - Estive em Morieux, na Grande Cartuxa, em Porte e na Vintcente, na Suíça.

Público - O que o faz correr para esses lugares? Procura Deus?

Philip Groning - Sim, procuro Deus. No início, queria fazer o filme e procurava um lugar para o fazer. Agora, em visita, isso traz-me a recordação do que foi viver no mosteiro – uma experiência muito boa e muito forte, e que se deseja ver começada noutro mosteiro. Mas não sou turista de mosteiros.

Público - É realizador, quis fazer um filme para dizer o quê às pessoas?

Philip Groning - Um filme conseguido abre o espaço às pessoas para que encontrem a sua própria questão. Um filme que é verdadeiramente bom não diz isto ou aquilo, isso é idiota, mas um filme bom coloca-nos num campo de tensão entre o silêncio, o barulho, o ritmo, a ausência das palavras, a ausência de Deus, a presença de Deus, e cada um pode procurar o seu caminho por dentro.

Público - No filme há duas seduções: a do realizador por este tipo de vida e a que se sente nos monges pela fé e por Deus. O filme foi também para falar dessas seduções?

Philip Groning - Eu coloquei uma frase [bíblica] no filme sobre a sedução [“Tu me seduziste, Senhor, e eu deixei-me seduzir”]. A sedução é uma palavra que tem um significado diferente conforme os países. Na América, é uma coisa muito má, na Alemanha é muito bela, ser seduzido é mesmo uma das coisas mais belas. Para mim, essa frase traduz a sedução positiva, no sentido de uma pessoa se abandonar a qualquer coisa e abrir-se completamente a uma influência, de se abrir um espaço da alma ao que vem do mundo e da vida. Para mim, é uma das coisas mais importantes para viver e para ser feliz, abrir-se nesse sentido, deixar-se seduzir.

Público - Qual é a sedução, no mundo veloz em que vivemos, de um tipo de vida como esta, quase inútil, pois eles não dão nada à sociedade?

Philip Groning - Felizmente. Mas eles dão qualquer coisa. É um pouco como um farol que não está lá para irmos ao encontro dele, mas para sabermos que, onde se vê luz, há terra. A função dos monges na sociedade é antes mostrar que – vocês como jornalistas, eu como realizador ou alguém como advogado ou operário – podemos mudar a nossa própria concepção do que é um ser humano, quando sabemos que esta é também uma decisão que se pode tomar e ser-se feliz com ela.
De repente, vê-se de forma diferente a nossa função como ser humano. Vemos, por exemplo, que não é necessário ser-se útil para se ser feliz. Não há nenhuma relação racional entre essas duas coisas. É complicado, mas a sedução de uma vida como a deles está em que se trata de uma vida incrivelmente radical e totalmente concentrada numa verdade. No seio de todas as religiões há sempre a busca de uma verdade absoluta. E isso é muito sedutor, hoje, porque o que é sedutor permanecerá sempre sedutor. Há também a grande sedução de não deixar que o tempo seja ocupado pelos aspectos consumistas da sociedade, que são sobretudo considerações de medo: Será que estou suficientemente bem vestido? Será que ganho dinheiro suficiente? Comprei o Mercedes certo ou um Mercedes que não é nada cool? Tudo isso é desperdício de tempo. A sedução deste tipo de vida é que ele dá a liberdade de esquecer tudo isso e dá verdadeiramente tempo para pensar o que fazemos na vida.

Público - Há alguém, na cena extra da produção do licor, que diz que os monges estão no cruzamento entre o conhecimento e a ciência. É esse conhecimento e essa ciência que nos faltam, aos que estamos fora?

Philip Groning - Quem diz isso não é um monge, um monge nunca dirá tal. Os monges dirão apenas que procuram fazer o seu melhor, talvez que estão a tentar ensaiar algo como colocar-se o mais próximo possível diante de Deus. Claro que nunca poderemos dizer que chegámos aí. Eles serão muito mais modestos, dirão que tentam fazer o melhor.

Público - Porque não ficou no mosteiro?

Philip Groning - Sinto-me sempre um pouco tentado. Agora, quando entrei no mosteiro, pensei de novo que gostaria de ficar ali por dois meses. Para viver lá, simplesmente, ou para escrever um guião... Aliás, é uma tendência frequente de muitos artistas, que trabalharam em conventos.

Público - Foi uma surpresa o sucesso do filme junto do grande público?

Philip Groning - Por um lado, não. Quando se é cineasta, pensa-se sempre que o próximo filme será um grande sucesso. Normalmente, o público não pensa assim...

Público - Mas já pensava assim, com este filme tão radical?

Philip Groning - Penso sempre que é preciso ser radical para ter sucesso. Talvez por isso eu não tenha sucesso como outros. Percebi que há muitos filmes sobre meditação no quadro asiático e pensei dar ao público europeu um filme que diga que isso é também possível no quadro da nossa cultura, pensei que haveria muita gente que o iria ver. Porque há qualquer coisa estranha nesta orientação para o budismo, o esoterismo, etc. É como se as pessoas dissessem: quero que alguém me ajude a ser completamente eu mesmo, mas quero também ser alguém completamente outro. É muito mais fácil encontrar o desejo em religiões muito distanciadas. Posso imaginar-me facilmente ser budista completamente feliz porque não tenho recordações de ser uma criança budista que discutiu com os sacerdotes budistas; no entanto, recordo-me de discutir com os padres católicos. Pensei então que, se fizesse um filme onde o público se colocasse em contacto consigo mesmo, de modo mais profundo, haveria muita gente que o iria ver.

Público - Porque decidiu filmar o olhar e os rostos dos monges para a câmara? Há ali uma dimensão estética do corpo...

Philip Groning - Filmei isso no início da rodagem. Dei comigo tão intimidado pelo silêncio que quase não me mexia e me escondia um pouco. Percebi que não se pode fazer um filme se não se quer ser visível.
Há um contraste entre a vida dos monges e a presença de uma câmara, um contraste muito forte. Não posso esconder-me. Então, era melhor colocar o contraste bem forte e dizer: se convidaram uma câmara, ela está aqui agora, olhem para ela. Isso ajudou-me a sentir-me à vontade e pensei que ajudaria o público a perder o sentido de voyeurisme, porque nunca ninguém pode lá entrar. Colocando os monges a olhar o público, a pessoa percebe que eles podem olhar cada um mais tempo do que cada espectador os olha.

Público - Eles aceitaram facilmente?

Philip Groning - Não todos, houve alguns que não quiseram ser filmados, mas [os outros] aceitaram facilmente. Para eles, uma câmara não tem a mesma importância que para nós, porque eles não são tão vaidosos, não é importante que eles estarem bonitos na televisão e os amigos comentarem.

Público - Há uma frase no filme que diz: “Em Deus não há passado, só presente.” Mas esta é uma ordem sobretudo do passado...

Philip Groning - É o velho monge cego que diz isso, em relação à morte. Ele não receia a morte, porque vem imediatamente a vida do além, porque o tempo só existe para nós como seres humanos. Mesmo para nós, existe de um modo muito contraditório. A única coisa que existe verdadeiramente é o presente e todas as outras coisas são objectos de memória. Mesmo a concepção do futuro: a imagem que se tem está numa recordação. O que ele quer dizer é que a única coisa que existe é o presente.

Público - É religioso?

Philip Groning - Sou.

Público - Católico?

Philip Groning - Recebi uma forte educação católica. E sou católico de uma certa maneira. Mas não estou de acordo com todas as coisas da Igreja, naturalmente.

Público - É mais católico hoje do que era antes de passar seis meses na Grande Cartuxa?

Philip Groning - Mais, muito mais. Antes, tinha muitas dificuldades. Pensava que a Igreja Católica se concentrava demasiado nas questões da confissão, da culpabilidade, do pecado. No mosteiro percebe-se que para os monges o importante é o sentido da graça, da felicidade. Para eles é um facto extraordinário que haja vida. Vivermos é uma graça, um presente de Deus.

Público - Já viu o livro de Paulo Moura e Nacho Doce?

Philip Groning - Sim. Gostei imenso. Acho que eles captaram a incrível individualidade dos monges, que são, enquanto indivíduos, realmente diferentes uns dos outros. Captaram também a luta interior deles para chegarem a um fim tão alto, ao mesmo tempo que, enquanto seres humanos, têm dificuldades, cometem faltas, têm momentos de fraqueza, escapam um pouco às regras. Capta ainda muito bem uma espécie de calor, de felicidade dos monges, que não são pessoas tristes. Achei ainda fantástica a produção do livro: o grafismo, o papel, tudo foi feito com enorme cuidado. Como os objectos que os monges produzem: coisas simples, mas muitíssimo bem feitas nos pequenos pormenores.

Adelino Gomes, António Marujo
in Público, 20.12.2007
Publicado em 27.12.2007

Sem comentários: