Uma leitura Zen de Ulisses de Joyce por Amy Hollowell

Shikantaza no rio Liffey

Ulisses de James Joyce, publicado pela primeira vez em 1922 numa edição limitada em Paris, é geralmente reconhecido como uma das maiores (se não a maior) obras em prosa do Século XX na língua inglesa. É reconhecido como uma obra de arte, uma magnífica obra-prima literária, um monumento modernista, e no entanto, tal como Stuart Gilbert escreveu em 1930 no seu marcante estudo do livro, “embora Ulysses seja provavelmente o livro mais discutido do nosso tempo, o livro em si é para muitos pouco mais do que um nome.’’ Décadas mais tarde, num novo século e num mundo completamente diferente, cada vez mais materialista e imerso na era da informação, a observação de Gilbert é ainda relevante, e talvez ainda mais pertinente hoje do que nunca.

Ulisses é o registo de um dia comum, o dia 16 de Junho de 1904, em Dublin. O “herói” deste dia comum é um homem comum, Leopold Bloom, e o livro é o “épico” do seu dia comum em toda a sua pequena e gloriosa banalidade. Bloom é um homem qualquer a viver tudo. Realmente tudo! O método de Joyce não deixa nada de fora; este é um espectáculo da totalidade da vida. Neste relato abrangente do dia de Bloom, tudo está ao mesmo nível; para o artista, um facto não tem mais valor do que outro. Ao testemunhar tudo o que surge, Joyce pratica a equanimidade perfeita quando representa os seus personagens tais como eles são. Um antigo mestre Zen exclamou: “Que belos flocos de neve! Eles não caem num outro lugar.” De igual modo, quando lhe perguntaram numa entrevista por que o pai de Bloom era húngaro, Joyce respondeu, “Porque o é!” Joyce retrata a vida como um todo integrado e coerente, em que cada detalhe é visto tal como é, no seu lugar.

Pode ser dito que a premissa espiritual do livro é uma aceitação total da vida, uma noção fundamentalmente budista. De facto, uma prática essencial do Zen japonês é aquilo a que se chama shikantaza, que significa literalmente “somente-sentar” ou “só sentar.” É uma prática que não utiliza nenhum suporte meditativo — nenhum mantra, nenhum objecto de concentração, nenhuma técnica — e que é caracterizada por uma intensa e não-discursiva atenção. Pode ser simplesmente definida como testemunhar a totalidade da vida. O autor de Ulisses, um irlandês de meia-idade exilado numa Europa do início do Século XX desfeita pela selvajaria da guerra, estava de acordo com o Terceiro Patriarca do Zen, o qual escreveu, muitos séculos atrás na China antiga, “O caminho perfeito não é difícil para os que não têm preferências.” Ele também dá eco a outro provérbio tradicional do Zen: “O dharma é igual, sem alto, nem baixo.”

Este é o caminho perfeito de Joyce e de Bloom, e como tal a obra de Joyce é eminentemente Oriental. A ordinaridade de Bloom é a do “verdadeiro homem sem um papel definido” do Mestre Rinzai. Bloom, tal como Whitman, tal como cada um de nós, contém multitudes. E ele, tal como todos os seres e todas as coisas, não tem limites, está em constante fluxo, fluindo interminavelmente, como o rio Liffey através de Dublin para o mar.

Joyce também quebra as nossas noções limitadas de tempo e de espaço, representanto o momento presente de cada momento, num dia específico numa cidade particular. “Segura-te ao agora, ao aqui, através do qual todo o futuro mergulha no passado,’’ diz o outro personagem masculino principal, Stephen Dedalus. De facto, nós seguimos Bloom, Stephen e os seus companheiros de Dublin (“Dubliners”) ao longo da cidade, ao longo de uma Quinta-Feira ao mesmo tempo única e ao mesmo tempo igual a outra qualquer. Joyce dá-nos unidade de tempo e de espaço, apresentando somente o aqui e agora de cada aqui e agora sempre em mudança — de hora a hora, da manhã até ao meio-dia até à noite, do quarto para a casa-de-banho para a cozinha para o escritório para o cemitério para a borda do mar para o “pub” para o bordel, e de volta outra vez ao quarto e à cama.

Como Homero antes dele, Joyce escolhe como tema a odisseia de um herói em viagem. Mas o “herói” de Joyce é supremamente humano, excepcionalmente mediano, manifestando a grandiosidade sem pretensões da bondade básica. Joyce dá-nos os heroísmos quotidianos de um homem num só dia. Recorda-nos Bodhidharma, um homem comum perante o imperador da China, proclamando que não há mérito, que nada é sagrado. Joyce gostava de observar que a magnificamente bela Helena, pela qual os grandes exércitos da antiga Grécia se batiam, estava velha e com rugas quando a Guerra de Tróia finalmente terminara.

Tal como Shakespeare, Joyce pega no material da experiência comum e, com os seus meios hábeis, tece juntos os fios aparentemente díspares numa seleccionada tapeçaria da vida, tal como ela é. Cada episódio tem um tempo, cor e parte do corpo correspondentes — o livro está vivo, o Corpo Uno do universo interdependente incarnado — e os 18 episódios estão inter-conectados por temas, eventos, pensamentos, canções, partes de frases, imagens, objectos, e lugares comuns. As vidas das personagens estão igualmente inter-conectadas de mil óbvias e subtis maneiras.

Joyce é bem sucedido, também, em fazer do estilo e do assunto uma só coisa; a “forma” da sua criação, e a miríade de formas de linguagem e de estilo utilizadas, manifestam a interminavelmente aberta, sempre-em-mudança, natureza de toda a vida. Os estilos literários, tal como identidades, aparentemente, não são fixos. A revolucionária utilização de Joyce daquilo que veio a ser conhecido como o monólogo interior, traz o interno para fora e o externo para dentro, permitindo fazer do corpo e da mente uma coisa só. Em estrutura e assunto, Ulisses funciona em tríades, cada grupo de três (episódios, personagens, etc.) incorporando dois “opostos” e a sua unidade, como duas bases de um triângulo e o vértice. De igual modo, através da representação inflexível da diversidade de Joyce, a unidade subjacente é revelada.

Inúmeros temas permeiam Ulisses, e diferentes leitores irão encontrar temas diferentes. Assim é qualquer leitura de qualquer uma das obras de Joyce, microcosmos infinitamente complexos do vasto universo. Contudo, existe sem dúvida um tema central em Ulisses. No início do livro, Stephen Dedalus pergunta-se: “Qual é a palavra que todos os homens conhecem?” e ele erra o dia todo pela cidade à procura da resposta, sem ver que esta está sempre ali, perante ele. Noite dentro, Bloom, num acto de verdadeira compaixão, irá finalmente prover-lhe a resposta.

O Ulisses de Joyce, tal como a Odisseia de Homero ou a Divina Comédia de Dante, pode ser lido como uma “alegoria das errâncias da alma”, a viagem ao longo do caminho do despertar. Na fábula de Joyce, a vida é um processo infinitamente rico de movimento no sentido da reconciliação (ou re-união com o verdadeiro ser de cada um), um retorno à verdadeira natureza de cada um, um desvelar da face original de cada um (antes dos pais terem nascido), um tornar completo, sendo um — íntimo — com todas as coisas, aqui e agora. Ler Ulisses é viajar pelo caminho do meio, onde estamos libertos de identidades fixas e limitadas, e de ideias e posições fixas. É ver as coisas tais como elas são, a nu, abertamente. É aqui que o relativo e o absoluto, como diz o cântico tradicional Zen, se juntam como uma caixa e a sua tampa. Sim: é esta a aventura Joyceana.
Texto retirado daqui

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